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Ilustração: Andrés Sandoval
SAMBA NO VAGÃO
A música como resistência

Apesar do céu nublado e da chuva fina, a animação contagiava todo mundo na plataforma 2 da Central do Brasil, naquele fim de tarde de segunda-feira, 2 de dezembro, no Rio de Janeiro. Sons de pandeiro, cavaco, tamborim e reco-reco davam o tom da festa, irradiando música por quase toda a estação.

O Trem do Samba partiu da Central pela primeira vez em 1996. Desde então, sambistas e aficionados passaram a se reunir ali todo ano para seguir viagem até o bairro Oswaldo Cruz, na Zona Norte. A comemoração criada pelo sambista Marquinhos de Oswaldo Cruz homenageava as andanças de Paulo da Portela e outros compositores pela cidade na década de 1920, difundindo o samba quando este ainda era um gênero marginal.

A festa conquistou os cariocas, que aos milhares passaram a acorrer à Central do Brasil, sempre em 2 de dezembro, quando se comemora o Dia Nacional do Samba. Chamou atenção também da Prefeitura do Rio, que resolveu patrocinar o evento e incluí-lo no calendário turístico da cidade.

Há dois anos, quando o bispo evangélico Marcelo Crivella assumiu a Prefeitura do Rio, o apoio foi retirado. Como neste ano também não houve patrocínio da iniciativa privada, a comemoração foi cancelada.

Alguns sambistas ficaram indignados e decidiram se mobilizar para não deixar o Trem do Samba morrer.

Ilustração: Andrés Sandoval
BOTECO ENGAJADO
O novo reduto da esquerda carioca

O relógio marcava 17h16 quando os primeiros clientes começaram a chegar ao bar, três minutos após a abertura. Uma turma de amigos escolheu uma das mesas da varanda para poder contemplar a vista panorâmica do pôr do sol, do alto do Morro do Pinto, no Centro do Rio de Janeiro, onde fica o estabelecimento. Enquanto os dois homens do grupo se acomodavam nas cadeiras de madeira, a mulher sacou o celular e se dirigiu à área interna para fotografar as paredes grafitadas com flores gigantes e, no meio delas, escrito com as sete cores do arco-íris, o apelo “Lula Livre”.

O Bar do Omar é o novo ponto de encontro da esquerda carioca – e por isso mesmo só abre as portas às cinco horas e… treze minutos, para lembrar o número eleitoral do PT. “Nós democratizamos um espaço de esquerda. Deixou de ser aquela coisa bairrista, como a Praça São Salvador”, defendeu Omar dos Santos Monteiro Júnior. O jovem negro de 29 anos, mais conhecido como Omarzinho, aludia a outro local de reunião da esquerda, no bairro de classe média de Laranjeiras, na Zona Sul.

Frequentado por pobres e ricos, o Bar do Omar passou a receber também a visita de personalidades do meio artístico, como Camila Pitanga, Roberta Sá e Humberto Carrão. “A Pitanga chega aqui, coloca a bolsa em cima do freezer e vai pra roda sambar. É lindo ver”, disse Omarzinho. O sonho dele é deparar um dia com Chico Buarque entrando pela porta do estabelecimento.

O bar começou a atrair gente da esquerda desde que a artista visual Rafa Mon grafitou a parede com o nome de Lula, em julho de 2018. O número de frequentadores aumentou ainda mais depois que Omarzinho postou nas redes sociais a nota emitida no local, que traz as seguintes frases impressas: “Um bar pode ter opinião política, um juiz não. Moro lesa-pátria #LulaLivre # BarDoOmar #Democracia.” É uma referência às conversas do juiz Sergio Moro com os procuradores da Lava Jato, divulgadas pelo site da agência de notícias The Intercept Brasil.

Ilustração: Andrés Sandoval
DOENTES DE BRASIL
Conversas sobre traumas políticos

Pelas ruas do Catete, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, um jovem de barba comprida e óculos de grau caminhava a passos largos, olhando sem parar o relógio. Eram quase seis da tarde da primeira sexta-feira de setembro. Ao chegar ao seu destino, Igor de Almeida descobriu que tinha se adiantado uma hora para a roda de conversa chamada “Doente de Brasil”.

Era a primeira vez que o encontro acontecia, no terceiro andar da sala de um prédio comercial, no Largo do Machado. Recém-formado em psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Almeida tomou conhecimento da roda de conversa graças a sua mãe, que viu uma notícia a respeito no Facebook. Ele e a mãe ficaram ainda mais próximos desde as últimas eleições presidenciais, quando ambos cortaram relações com vários parentes que votaram em Jair Bolsonaro. “Em Petrópolis, minha terra natal, a maioria das pessoas votou nele. O fascismo vai aparecendo de forma bem velada na cidade”, ele disse.

O projeto “Doente de Brasil” foi criado pelas psicólogas Simone Villas Bôas, de 45 anos, e Marcela Lima, de 29, depois que leram em uma rede social, em julho deste ano, uma história contada pelo psicólogo Fernando Tenório. Ele atendera um homem com sintomas de grande ansiedade provocada pelo acúmulo de trabalho após seus colegas serem demitidos e pelo medo de perder o emprego. O psicólogo escreveu: “Qual o diagnóstico para isso? Brasil. Adoeceu de Brasil. […] Adoecer de Brasil é a mais prevalente das doenças. […] O Brasil mata, e é de desgosto.”

As duas psicólogas imediatamente concordaram com o diagnóstico de Tenório: determinadas situações político-econômicas podem influir negativamente na saúde psíquica. Lima – que trabalha no Centro de Atenção Psicossocial (Caps) como psicóloga da saúde mental – explicou que até mesmo os pacientes psicóticos, grupo que ela atende, costumam ser afetados. “Tem esse estigma de que o psicótico não entende o que está acontecendo. Mas entende, sim, pois ele é atingido diretamente. Por exemplo, com a perda de seus benefícios decorrente do esvaziamento das políticas públicas.”

Por isso mesmo, Lima e Villas Bôas, ambas alinhadas à esquerda, resolveram criar a roda de conversa, para que “doentes de Brasil” conversassem à vontade sobre seus traumas e preocupações. E para que elas mesmas encontrassem interlocutores com os quais pudessem debater suas questões. “Eu percebi que precisava estar junto de outras pessoas e pensar de um modo diferente”, disse Villas Bôas, que atua como psicóloga clínica. “Estava me sentindo muito só.”

Ilustração: Andrés Sandoval
NATAL 40 GRAUS
Uma formatura de bons velhinhos

Eram nove da manhã de 5 de novembro, terça-feira, quando o primeiro Papai Noel chegou ao Trem do Corcovado, um dos acessos à estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro. Logo depois, começaram a aparecer outros senhores de roupas vermelhas, cabelos e barbas longas e grisalhas, que foram se reunindo na entrada do ponto turístico. Os galhos estáticos das árvores ao redor indicavam que as próximas horas seriam muito quentes. Mas os bons velhinhos pareciam nem notar as ameaças do calor, ansiosos que estavam para a formatura da 26ª turma da Escola de Papai Noel do Brasil.

Perto do horário do início da cerimônia, marcado para as dez da manhã, os trinta formandos resolveram se juntar para fazer uma foto. Turistas e transeuntes imediatamente sacaram seus celulares e registraram a cena. Uma mulher se aproximou do único Papai Noel negro ali presente e pediu para fotografá-lo com a filha. “Olha que legal”, disse ela à menina. “Você viu o Papai Noel antes de todas as crianças.”

Aos 66 anos, Aylton Lafayette – ou Papai Noel Obama, como ele gosta de ser chamado, por causa de sua admiração pelo ex-presidente americano – é um dos dezenove negros formados pela escola, desde sua criação, e o primeiro a trabalhar em shopping centers do Rio de Janeiro. Ele contou que, quando as crianças o questionam por ser um Papai Noel diferente do tipo tradicional, solta esta resposta bem-humorada: “É que eu desço por muitas chaminés.”

Entre os Papais Noéis, destacava-se, por sua roupagem pouco ortodoxa, o advogado Paulo Mourão, de 69 anos. Para enfrentar o calor de dezembro, há três anos ele se fantasia de Papai Noel surfista, com bermuda branca, blusa florida vermelha, gorro natalino e prancha de surfe. “Para a festa de hoje, podíamos escolher outras roupas. Com o calor que faz no Rio, eu não pensei duas vezes e escolhi essa”, afirmou.

O uruguaio Hugo Diaz, que tem 63 anos e está no Brasil há dezoito, chama de “noelismo” o seu trabalho no Natal. Ele decidiu se tornar Papai Noel depois que foi parar na UTI, prestes a enfartar. “Pensei em todas as coisas que ainda queria fazer, e a primeira que veio à minha cabeça foi ser Papai Noel”, recordou. Fechou, então, a loja automotiva que tinha em Vitória, no Espírito Santo, e em outubro deste ano se mudou para o Rio, depois de saber que tinha sido aceito no curso. “O noelismo me deu a oportunidade de colocar para fora tudo o que estava comprimido em mim”, confidenciou.

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