“Ninho da Inocência”
Alentejo - Portugal //2010
[ Musical sugestion:Vinicio Capossela “Camminante” ]
“(...)Cá fora uma pessoa não pode governar-se sozinha, como tu. Se tenta fazê-lo,enlouquece. Na melhor das hipóteses, fracassa. Há quem o tente, por vezes. Efoge por florestas ou por mares jurando que não precisa dos outros, que nuncaos outros o encontrarão. E regressa derrotado, para fazer parte do formigueiro,da engrenagem: para procurar inutilmente, deseperadamente, a sua liberdade.Ouvirás falar muito de liberdade. Entre nós, é uma palavra quase tão exploradacomo a palavra amor que, disse-to já, é de todas a mais explorada. Hás-deencontrar homens que se deixam rasgar em pedaços pela liberdade, sofrendotorturas, aceitando porventura a morte. Espero que sejas um desses. Porém, nopreciso momento em que te deixares dilacerar pela liberdade, descobrirás queela não existe, que, quando muito, existiu apenas enquanto a procuraste: comoum sonho, uma ideia gerada pela recordação da tua vida antes do nascimento,quando eras livre porque eras só. Repito uma vez mais que estás prisioneiroaqui dentro, continuo a pensar que tens pouco espaço e que daqui em diante viverásna escuridão: mas nessa escuridão, nesse pouco espaço, és livre como nunca maisvoltarás a ser neste mundo imenso e cruel. Não tens de pedir licença a ninguém,aí dentro, não tens de pedir ajuda a ninguém: porque não tens ninguém a teulado e não sabes o que é a escravidão. Cá fora, em contrapartida, terás mil eum donos e senhores. E o primeiro de todos serei eu que, sem querer, sem osaber, sequer, te hei-de impor coisas que estão certas para mim mas não parati. Aqueles bonitos sapatinhos, por exemplo. São bonitos para mim; mas para ti?Hás-de gritar, hás-de berrar quando tos calçar. Hão-de incomodar-te, tenho acerteza. Mas hei-de calçar-tos à mesma, pretendendo porventura que tens frio,e, aos poucos, acabarás por habituar-te. Sujeitar-te-ás, domado, a ponto desofreres quando não os tiveres. E será este o princípio de uma longa cadeia deescravidão em que o primeiro anel será sempre representado por mim, visto quenão poderás passar sem mim. Sem mim para te alimentar, para te cobrir, para telavar, para te embalar nos braços. Depois começarás a andar por ti, a comer porti, a decidires por ti aonde hás-de ir e quando te hás-de lavar. Hão-desurgir-te então novas escravidões. Os meus conselhos. Os meus ensinamentos. Asminhas recomendações. O teu próprio medo de me fazeres sofrer se não fizeresaquilo que te tiver ensinado. Há-de passar muito tempo, aos teus olhos, antesque eu te deixe partir como os passarinhos que os pais põem fora dos ninhos, nodia em que sabem voar. Até que esse dia há-de chegar, e deixar-te-ei partir,deixar-te-ei atravessar a rua sozinho, com o verde e o vermelho.” (OrianaFallaci “Carta a um menino que não nasceu”)