Inês Vales's profile

Abílio - The Name the City Gave You

"Abílio", da série O Nome que a Cidade te Deu
21 cm x 30 cm, caneta, lápis branco, grafite e óleo sobre papel vegetal
Concretizado no âmbito do pós-projeto da Unidade Curricular de Desenho III.


O tempo deixa de ser uma ampulheta que vais gastando a areia,
e faz lembrar um ceifeiro que ata a sua gavela.

- Antoine de Saint-Exupéry, Cidadela


          O Abílio era neto de um pastor de nuvens e filho de um contador de estrelas. Gostava de números e de letras. Por herança começou a apascentar nuvens aos dez anos e a colecionar estrelas aos onze. Aos doze anos percebeu que a sua janela de aldeia era todo um mundo e que o ruminar lá longe das grandes cidades pouco lhe dizia respeito.
          Aos treze anos, o pai morreu. Abílio viu a aldeia fazer-se pequenina até já não se ver no horizonte quando se mudou para os subúrbios de uma dessas grandes e azafamadas cidades de que a prima Judite tanto lhe falava. Rapidamente sentiu que por ali havia pouco que ver. A prima que vinha nas férias grandes tornou-se colega de escola, os pinheiros tornaram-se postes de eletricidade. As montanhas, prédios. Os vales sucumbiram e cobriram-se de estradas. E a aldeia lá longe permaneceu hesitante. Plácida.

          O rapaz trouxe consigo a beleza trágica e simbólica das açucenas e o ímpeto organizativo que uma folha de papel branca estrangula. Como se a sua vida até aí fosse uma série de capítulos que mereciam escrutínio arquivista, criou uma espécie de fascículos que dividiam a sua existência. Umas revistas com recortes, fotografias, notícias, folhetos, textos, memórias suas e de existências alheias que haviam carimbado o seu percurso até ali. Quem vive de passado é museu, por isso Abílio tornou-se antes colecionador. O pai tinha-se ido embora. Ninguém sabe muito bem para onde. Algures no meio dos seus algarismos que contabilizavam estrelas havia de o encontrar perpetuamente.
           Conservou-se taciturno sem se vestir de tristeza. Gastava poucas palavras, temendo extraviá-las. Deu-se conta de que tinha de colecionar testemunhos que não fossem seus. De se fazer rodear de pessoas que gostasse de trazer permanentemente consigo no bolso.
            Sentiu-se apátrida. Agora também brincava aos turistas na aldeia, junto da prima Judite.
            
             Nunca cessou de se encantar com a translucidez da casa da tia Celeste. Não havia daquilo na cidade. Em casa da tia Celeste até os espelhos eram honestos. No sótão ouve-se quem do quintal fala. E o Abílio deliciava-se a colecionar o timbre e a entoação com que se conversa pelos ventos, na aldeia.

              Deu a mão à amiga saudade. No seu apartamento dos subúrbios arranjou-lhe uma cadeirinha para ela se sentar ao sol na varanda. Sentava-se ao lado. Recordava:
              Judite que, dentro de casa, respondia à conversa alheia entre a sua mãe Lena e a tia Celeste. E Abílio achava graça a ver que aquela casa sem paredes, com vista desafogada para o céu, não protegia a prima, filha da cidade, daquela sinceridade gritante do campo. Porque na aldeia não há que pedir licença a ninguém, quando há um recado grita-se que o vento encarregar-se-á de fazer chegar a mensagem.
               No Verão ao final da tarde, acompanhavam sempre a tia a uma horta que ficava no topo de um cabeço de onde se via a aldeia inteira. Quando se aproximava o crepúsculo, ecoava pelo vale, lá muito longe, vinda de casa, a voz de Lena a falar do jantar:
            
              - Ó JUDITE!
              - DIZ!
              - AINDA TARDAM MUITO?
              - O QUÊ?
              - SE AINDA DEMORAM MUITO!
              - Ó titia, ainda demoramos muito?
              - O jantar já está? – perguntava a tia.
              - Deve estar – concluía baixinho a Judite.
              - Uns dez minutos.
              - UNS DEZ MINUTOS!
              - ESTÁ BEM! – rematava Lena lá longe.

               A translucidez da casa da tia Celeste ia ficando baça com o passar dos anos.
               - Sabes, Abílio – informava Judite muito preocupada – já lá vai o tempo em que a minha mãe dizia que saíamos depois de almoço e só nos íamos embora de noite. Não sei o que sucedeu.
               Da última vez que lá foram, levantou-se um vento de Verão.
               - Ai!Vamos! Vamos fechar as janelas antes que ele entre cá dentro – alertava a tia Lena, atarefada a arrumar couves que vinham embrulhadas numa saca de serapilheira.
             Quedaram-se depois sobrinho, tia e tia a mirar uma janela onde faltava um vidrinho.
             - Temos de pôr qualquer coisa naquela janela. É que às vezes um vento destes entra por um buraquinho e leva uma casa.
             A janela estava partida porque no outro dia a chave ficou trancada por dentro. Havia que entrar por algum lado.
A tia mirava a singela quadrícula com uma saudade patética, já lá ia a hipótese de entrar pelo telhado. Dera-se duas vezes. Deixar a chave por dentro e armar a proeza de entrar por meio de umas telhas postas fora do sítio. Agora o telhado é uma placa. Maciça. Rude. Como algumas pessoas, mas, essencialmente, como as construções de pouca alma das grandes cidades.

             A maçaneta também deu de si e a Judite viu-se obrigada a bater à porta pelo lado de dentro. Coisa inédita aquela. Deixou a chave por fora para o Abílio, que tinha ficado na rua, entrar depois dela, mas lembrou-se de uma coisa que tinha lá fora e principiou a bater à porta. O Abílio veio abrir e ela disse:
             - Desculpa, deixas-me entrar aí para fora?

              Nos subúrbios, o Abílio aprendeu a apaixonar-se por outras coisas. Tinha uma paisagem predilecta. Havia um grande pedaço de terra e arvoredo, com uma laranjeira lá no meio entre o dormitório da grande cidade e a parte velha da vila. Certa vez uma senhora andava a apanhar fruta por lá, com um carrinho de mão e acompanhada por um cão. Agora sempre que ali passa, o Abílio esforça-se por visualizar a senhora, muito compenetrada no seu ofício campestre, rodeada por um campo que tem fim à vista e tendo por plano de fundo uma cordilheira de prédios, no lugar de uma cadeia montanhosa pontuada de pinheiros.  

              Fez amizades díspares e portanto interessante. Enriquecedoras. A Etelvina que falava como o incessante correr de um regato e o Gilberto que era de poucas palavras.
              Escusavam de falar se não adiantavam nada ao silêncio. E quando Etelvina os via debruçados sobre semelhante tema dizia:
              -Tu gostas de estar calado e ele mudo permanece.

             Gostava muito de ouvir portanto. E é já sabido que Etelvina gostava muito de falar. Às vezes no meio da sua pregação, ela interrompia o silêncio dele muito sisuda:
             - Olha lá, porque é que estás para aí a medir o comprimento da linha do horizonte, Abílio?
             E o Abílio, que para lá do mar de telhados estava a fixar um ponto que não se via, só lhe respondeu:
             - Achas que se eu falar alto, como faz a Judite, a tia Celeste me ouve daqui?

Abílio - The Name the City Gave You
Published:

Abílio - The Name the City Gave You

Published:

Creative Fields