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Reportagem - Saúde para quem?

Saúde para quem?

Os dados apontam problemas de gestão na área da saúde em Porto Alegre: no ano passado, a incidência de doenças como o HIV chegou a ser quase três vezes maior na população negra do que na branca.

Por Laura Maria
Representação da população de Porto Alegre classificada por etnia segundo dados do Censo de 2010 do IBGE.
Há 11 anos era instituída a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). Apesar disso, no município de Porto Alegre, onde a Política completou 10 anos sendo um dos temas centrais da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), os números ainda mostram uma dura realidade quando falamos sobre saúde da população negra.

A PNSIPN surgiu com o objetivo de melhorar os números históricos que acompanham a saúde da população negra brasileira em diversas doenças, como tuberculose, HIV e diabete mellitus. Em suas diretrizes, traz o compromisso de todas as esferas — federal, estadual e municipal — de combate à discriminação SUS, assim podendo fornecer acesso digno a todos que dele precisam.
Na Capital, onde a população branca é quase quatro vezes maior do que a preta e a parda juntas, é importante pensarmos no impacto e necessidade de políticas de saúde pública como a PNSIPN. Outro fator de análise importante, de acordo com a sanitarista e ativista, Daiana Santos, é a situação de vulnerabilidade que atinge as populações periféricas. “O que eu vejo é um descaso com as periferias, então considerando que a maioria das pessoas que habita nesses locais é negra, a gente vê um descaso com a população negra”, conta.

Um exemplo disso, são os índices de 2019. Os dados, baseados nos números divulgados pela Prefeitura Municipal, mostram que a cada 100 mil habitantes brancos, 33 contraíram HIV. Em contrapartida, na população negra, o índice é de 91 a cada 100 mil. O mesmo se repetiu com os casos de Tuberculose: a incidência a cada 100 mil habitantes na população branca foi de 114 casos, enquanto a parcela negra da população porto-alegrense chegou ao número de 320 casos no mesmo período.
Representação gráfica do impacto da doença nas populações branca e negra, baseada em dados oficiais da Prefeitura Municipal de Porto Alegre no ano de 2019.
Representação gráfica do impacto da doença nas populações branca e negra, baseada em dados oficiais da Prefeitura Municipal de Porto Alegre no ano de 2019.
“A única explicação plausível para diferenças como essas nos índices da população negra é o racismo. Esse fator tem sido pontuado ao longo dos anos pelos movimentos negro, porém, a resposta estatal ainda é falha e sendo assim, permite que pessoas negras ainda morram por desassistência baseada na cor/raça”, afirma a enfermeira e doutoranda em Sociologia, Junara Ferreira.

E esse é outro ponto importante no debate sobre os números desiguais na saúde e em tantas outras esferas: o racismo. Ainda que o conceito de país miscigenado seja amplamente difundido na sociedade, reforçando o mito da democracia racial, a realidade é que o tom da pele e as características fenotípicas ainda definem o funcionamento de muitas instituições, sejam elas públicas ou privadas.

A enfermeira e responsável pela Coordenação de Saúde da População Negra de Porto Alegre, Elaine de Oliveira Soares, afirma que, apesar dos avanços feitos na área em que atua, ainda é necessário analisar fatores como este na hora de entendermos os índices. “Sabemos que o racismo está nas nossas estruturas e por isso temos dados tão desiguais. Isso é potencializado pela desigualdade social e pelas falhas presentes no SUS, que ainda não consegue garantir todos os seus princípios, como a equidade no atendimento”, comenta.

A falta de conhecimento sobre a Política também é um dos fatores decisivos para que ocorram mudanças nas estruturas. “Há um desconhecimento sobre a PNSIPN e falta de implementação entre profissionais da saúde e nos serviços da área. Isso acaba influenciando na não realização de planejamentos que considerem as realidades locais, o que resulta na desassistência. Práticas discriminatórias e racistas se incluem nesses fatores e necessitam ser consideradas na elaboração da política municipal de saúde”, completa Junara.

O fato é que os números estão diretamente relacionados às ações da gestão. O que mostra que, mesmo com a implantação da Política, Porto Alegre ainda tem muito a desenvolver e aperfeiçoar no quesito saúde da população negra.

Racismo na saúde: a falta de um sistema direcionado para denúncias

Outro ponto importante quando abordamos o tema é a falta de suporte para as reclamações de racismo no sistema de saúde. Na Programação Anual de Saúde de 2016, uma das metas era estabelecer um Protocolo de Sindicância para casos de discriminação, entretanto o Conselho Municipal de Saúde (CMS) não aprovou a proposta e, desde então, não existem registros de novas iniciativas similares.

Ainda dentro desse assunto, outra meta estabelecida no mesmo ano, para que fosse possível a implantação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra em mais de 25% dos serviços de saúde, foi a formação de servidores da Ouvidoria para situações de discriminação e racismo, por meio de oficinas. Porém, de acordo com a SMS, a meta não foi atingida plenamente.

No esclarecimento sobre o assunto, feito via Lei de Acesso à Informação no dia 28 de abril de 2020, um dos motivos pelos quais a meta não foi 100% concluída seria a transição de equipe da Ouvidoria. Além disso, também é feita referência à um grupo de trabalho com servidores da SMS, CMS e Procuradoria Geral, que apontou a necessidade de rever o Estatuto do Funcionário Público, a fim de definir as medidas cabíveis nos casos dos crimes mencionados, porém após algumas considerações do Conselho, a revisão aguarda um seminário que visa ampliar o debate da proposição.

Também na resposta, foi explicado que, como não existe de fato legislação municipal para casos de racismo no serviço público, o caminho utilizado, na maioria das vezes, é a abertura de sindicância para o servidor responsabilizado pela denúncia.

Situação de vulnerabilidade e a pandemia

Além dos problemas já encontrados na área da saúde, especialmente nas políticas direcionadas às minorias, outro desafio surgiu recentemente: o novo coronavírus. A pandemia do vírus têm atingido a vida de todos de diferentes formas porém, assim como acontece com outras doenças, a Covid-19 acaba impactando de forma mais expressiva nas populações vulneráveis socialmente, que não tem acesso a orientação, atendimento ou sequer podem realizar isolamento, a fim de tentar evitar o contágio.

Uma das grandes preocupações quando falamos de vulnerabilidade e a pandemia, é a população em situação de rua. Na Capital, segundo os dados mais recentes do Observa Poa, de 2011, 55,3% do adultos em situação de rua são negros. Esse dado também pode ser relacionado com o maior impacto do desemprego na população negra do município.

Falando sobre desemprego, os números também afetam de maneira desigual: dados do IBGE de 2019, mostram que a taxa de brancos desempregados em Porto Alegre foi de 6,63% enquanto a de não-brancos chegou a 8,57%. Em tempos de pandemia, onde muitos têm perdido seus empregos, o que afeta diretamente nas condições de vida — moradia, alimentação e saúde, principalmente — assusta pensar que em Porto Alegre, essa já é a realidade de muitas pessoas negras.

Buscando ajudar mulheres afetadas durante a pandemia, Daiana tem coordenado o “Fundo de Amparo ao Combate à Fome em Poa: para mulheres em situação de vulnerabilidade afetadas pelo Coronavírus”. Atuando nas periferias levando auxílio, ela diz notar diversos problemas entre a relação da doença com a saúde da população. “São pessoas que historicamente já vem sendo abandonadas e quando a gente fala de um vírus, esse não é o maior problema delas. Fica difícil inclusive criar uma relação de cuidado, prevenção, pensando que se nós formos falar de higiene, falta até mesmo saneamento básico”, afirma.

O grande problema, para além do escopo da saúde, são as falhas estruturais existentes. A saúde, enquanto ausência de doença, depende também de fatores que garantam higiene, alimentação, além do atendimento de qualidade. No final das contas, a pandemia reforçou ainda mais alguns dos desafios da próxima gestão: certificar o básico, como água, luz e saneamento, especialmente a população periférica, majoritariamente negra, e ampliar o sistema de saúde, para que assim seja possível, mais do que tratar as doenças: preveni-las.

A assessoria de comunicação da Secretaria Municipal de Saúde foi procurada, por e-mail, nos dias 14 de abril, 4 de maio e 25 de maio para se pronunciar oficialmente sobre o conteúdo desta reportagem. Sem sucesso, confira abaixo a resposta obtida via Lei de Acesso à Informação, solicitada no 4 de maio e respondido quatro dias depois, no dia 8:
“Relativo ao seu pedido de informação ao Município de Porto Alegre, informamos que a Coordenação de Atenção à Tuberculose, IST, HIV/AIDS e Hepatites Virais realiza campanhas de prevenção que abrangem a população em geral e atua como parceira em ações específicas realizadas pela Saúde da População Negra. A exemplo de ação realizada no Dia da Consciência Negra, em 20 de Novembro de 2019. Acrescenta-se como ações importantes dessa área, o acompanhamento de casos de usuários e discussão com os diferentes níveis de complexidade que abrange a atenção à saúde com o objetivo de qualificar a assistência e sensibilizar os profissionais para as diferentes características e vulnerabilidades da população”.
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