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Superfícies de um lugar / Quartel do Indaiá

SUPERFÍCIES DE UM LUGAR
2017
Projeto desenvolvido na disciplina Expressão Gráfica III, no curso de Design Gráfico da Universidade Estadual de Minas Gerais. Utilizando a metodologia Superfícies de um lugar, o objetivo era elaborar padrões a partir do tripé:
território; técnica e suporte.






TERRITÓRIO 
O Quartel do Indaiá é uma comunidade quilombola localizada no distrito de São João da Chapada, município de Diamantina, na região do Alto Jequitinhonha. Sua história está diretamente ligada ao garimpo e por isso, na década de 30 do século XVIII, foi construído um posto de fiscalização para combater o contrabando de diamante.
No início do séc XIX, a comunidade surgiu após a desativação deste posto. Os córregos do Luiz Carlos e Catemirim cruzam o Quartel e foram pontos de garimpo de diamantes. A intensa busca, há mais de 300 anos, modificou de diversas formas a vegetação nativa e a paisagem, com aumento do processo erosivo e de voçorocas.


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TÉCNICA 
O entrelace é muito utilizado pelos moradores locais para fazer peneiras, balaios e antigamente, até forros de telhados. Os quadrados que se formam nos feixes chamados de cruz é o cerne do trabalho, assim como as diagonais que geram a circunferência, chamadas de caracóis. O bambu é utilizado na sua totalidade, tanto a parte interna quanto a externa. Além do bambu, utiliza-se a taquara.




SUPORTE 
Normalmente o bambu de taquaruçú é utilizado para a criação dos entrelaces. Outro material muito utilizado pela facilidade de se encontrar na região, são os bambus e as folhas de indaiá. O bambu de taquaraçú está sumido na região do Quartel do Indaiá por conta do clima. Os que ainda são encontrados estão muito secos, por isso foi utilizado o bambu comum para este projeto. Depois de cortados os bambus verdes, deve-se deixá-los na sombra para não murchar. A trama estudada para fazer a peneira é utilizada no campo, para colher café, catar feijão, e também na cozinha como objeto de suporte.​​​​​​




/ ato 01 / o cavalo do olhar profundo

Ao pensar na tríade para este trabalho, o primeiro território que pensei foi o Quartel do Indaiá. Uma comunidade quilombola paradisíaca e abençoada que tive a sorte de conhecer durante o ano que morei na cidade de Diamantina. Ao refletir sobre qual técnica utilizar, recordei dos forros dos telhados acreditando que seu suporte era algum tipo de palha. Fiquei a pensar que era um material para se investigar. Aproveitando o feriado, na quarta-feira, dia 14/06/17, após um dia cansativo de estudo e trabalho, eu, meu companheiro e meu sogro, saímos de BH às 21h. O caminho para o Quartel do Indaiá, passa por Sete Lagoas, Curvelo, Presidente Juscelino, Gouveia, Datas...e antes de chegar na famosa Diamantina, seguimos em direção ao Guinda, Sopa, Morrinhos, São João da Chapada e, finalmente chegamos ao Quartel do Indaiá. Após passarmos por 37 km de estrada de terra, começamos a gravar com o celular “a chegada”. Ficamos todos em silêncio para conseguirmos captar o áudio da forma mais natural possível, e seguimos. A primeira etapa para entrar nessa comunidade é lavar os pés, pois há um rio que passa por cima da estrada, e toda vez ao entrar ou sair, independente do meio de transporte, ou se é a pé, lava-se os pés no rio. Para os moradores da comunidade e para mim, é uma genuína forma da natureza de mostrar a importância energética daquele lugar.

Passamos pela placa com o nome Quartel do Indaiá e pela casa de alguns moradores, inclusive pela casa de Dona Maria Tiburcia, onde mais a frente relatarei minhas vivências com ela. Passamos pela Igreja e pela cruz e chegamos na rua principal, onde se situa a casa de nosso grande amigo Carlão, nossa estadia local. Ao chegarmos perto da casa dele (ainda com o celular ligado e gravando), às 2 horas da madrugada, eis que os faróis do carro iluminam um belo cavalo marrom de patas brancas, estático, de rabo para a porta da casa, em uma posição que para nós, era possível perceber minuciosamente sua anatomia lateral, envolto pela neblina e pelo sereno, em uma espécie de “filme”, uma bela e sensível cena. O cavalo que estava olhando para baixo, se alimentando, virou o rosto em direção ao carro e nos encarou fixamente. Durante alguns segundos nessa comunicação intensa através do olhar, ele voltou o rosto para a frente e deu passos lentos saindo da frente do carro, como em um desfile cheio de misticismo. Paramos o carro e desligamos o celular eufóricos com o momento ali vivido. Curiosíssimos para vermos a mesma cena pelo olhar da câmera, ligamos o computador, descarregamos a câmera e assistimos a cena do início ao fim. Desde o lava-pés até... até... alguns segundos antes do surreal cavalo surgir no nosso caminho.

Seria possível que a memória do celular tivesse acabado sem termos percebido? Seria possível que a câmera do aparelho tenha dado algum tipo de pane no sistema? Lembro claramente que desligamos a gravação após o encontro esplêndido. Segundo o nosso amigo Carlão, “as assombração do Quartel nos mostram coisas que nem sempre podem ser gravadas”.




/ ato 02 / o entendimento

Durante as primeiras conversas com o Carlão sobre o trabalho Superfícies de um Lugar, e também sobre o conceito de terroir, entendi que os forros das casas mais antigas eram feitos de taquara, também conhecida como: taquaraçu (principalmente pelos índios); e/ou taquaruçu (ou taquarussu). Por definição, açu ou assu significa: grande. Hoje em dia, os forros das casas são feitos do talo da folha do indaiá com uma camada de barro por cima. Segundo Carlão, “a taquara é conhecida de cruzeta, é essa que pega o capeta”. Rapidamente indaguei: “pega o capeta? Como assim pega o capeta?”. E ele me respondeu: “no dia de São Bartolomeu, na hora que dá um redemoinho, você joga no redemoinho. Aí ela prende o capeta, que seria o Saci-Pererê. Aí cê vem aqui, faz uma cruz na rolha, pega uma garrafa e abre um buraco. Ele entra na garrafa, aí cê tampa a garrafa. Aí, ele vai fazer o que você quer. Seus desejos todos. Tipo a lâmpada do Aladin. Aí a gente põe atrás da porta”.

Fui apresentada por Carlão à trama de taquara em uma peneira e em um balaio. As tramas eram muito diferentes. A simetria é o mais interessante. Com pouco conhecimento no assunto, perguntei a ele como é a taquara. E a resposta foi a seguinte: “é um bambu do brejo, você vai tirar a casca da taquara, igual é com o bambu e vai fazer a trança com isso aqui. Qual a vantagem da taquara? Ela não quebra. Ela enverga, mas não quebra. Vai fazer isso aqui com o bambu para você vê. Mesmo verde ela não quebra. Ela é trançada verde, depois que ela seca”. Para quem nunca teve contato com essa técnica, é muito difícil. E ainda tem o seguinte fato que pode mudar o rumo da história desse trabalho, que esta diretamente associada ao conhecimento dos mais velhos, que já estão partindo. E...os mais novos, não querem aprender, porque é um exercício de paciência.

Fiquei sabendo através de Carlão que quem poderia me ensinar a fazer o trançado de taquara é Maria Tiburcia. Para o aprendizado, teria que achar um feixe de taquara, teríamos que ir no mato procurá-la. Mas pedimos a seu Vicente que nos trouxesse quando passasse por aquelas bandas próximas a casa dele, mas a resposta foi: “as taquara deram flor moço”. Isso acontece de tempos em tempos devido ao clima. O bambu e o taquaraçú também florescem, todos ao mesmo tempo, e lentamente,  morrem. Os moradores do Quartel dizem que quando o bambu floresce, ele deu arroz. Significa, que quando a taquara dá flor, ela está morrendo. Com a secura e a falta de chuva, as taquaras foram ficando secas e sumindo. Disseram que depois de sete anos as taquaras voltarão. As verdes são muito difíceis de encontrar. Se é que ainda tem na região! Essa notícia é triste e real. Mas, não podia parar com a pesquisa. E a solução para este problema foi trabalhar com o bambu e as folhas de indaiá como superfície, que tinha aos montes no terreno de Carlão.​​​​​​​





/ ato 03 / Dona Tiburcia

Maria Tiburcia é uma pessoa muito conhecida no Quartel do Indaiá. Com 86 anos de idade e uma força incrível, ela viveu uma história diferente dos moradores dali. Próximo aos 30 anos de idade, ela foi para Belo Horizonte e trabalhou como cozinheira para a família do ex-Governador de Minas Gerais Israel Pinheiro, e depois de muito anos nessa função, trabalhou em dois restaurantes reconhecidos pela culinária italiana requintada. Depois de décadas na cidade grande e aposentada, ela resolveu voltar para sua comunidade e lá está até hoje.

Meu primeiro contato com ela foi em 2015/2016, quando eu e Mateus, meu companheiro decidimos que tínhamos que levar nossas famílias para conhecer aquele paraíso. E esse desejo aconteceu. Conseguimos reunir nossos sogros e sogras, irmãos, sobrinhas e amigos. E por indicação do Carlão, que nos contou sobre a delícia que eram as receitas de Tibúcia, batemos a sua porta e perguntamos na cara dura se existia a possibilidade de ela nos fazer um almoço no dia seguinte. E assim foi feito. No dia seguinte, fomos almoçar na casa dela e fomos surpreendidos com o sabor de sua comida, com a delicadeza de suas louças, com o carinho impresso em diversos “causos” contados. E assim, aconteceu em todos os dias que estivemos lá. Após o primeiro almoço, marcamos prontamente para todos os dias que vieram. Foi uma experiência única. Rondellis, canellonis e lasanhas combinadas com galinha caipira, broto de samambaia, feijão e angú.

Dessa vez, eu, Mateus e Fernando (meu sogro), fomos almoçar na casa dela e tínhamos a intenção (com muito respeito e uma certa timidez) de lhe perguntar mais sobre as peneiras de taquara, e onde encontraríamos a mesma.

Nessa narrativa, é muito importante tentar sentir a felicidade que ela demonstrou ao perguntamos sobre esse assunto. Ela entendia mesmo sobre os processos e sobre a história da técnica no quilombo do Indaiá. Disse de forma natural que as taquaras haviam sumido e que as que tinham estavam completamente secas. Que com a taquara seca não seria possível fazer o entrelace, pois ela quebra toda. Pensado nesse sumiço da taquara, levei um pequeno feixe de bambu da casa de Carlão, e assim que terminamos de almoçar, ela pegou um facão e me mostrou rapidamente como cortava o bambu e como limpava. Fiquei perplexa de como era fácil para ela manusear o facão e o bambu. Lhe contei do trabalho Superfícies de um Lugar, sobre minhas intenções e meus objetos de estudo, e perguntei se eu poderia voltar no dia seguinte com as tiras do bambu já limpas para ela me ensinar como se fazia. Sem qualquer dúvidas, ela me disse que sim.Eu poderia voltar no dia seguinte, na parte da tarde, que ela me mostraria como é que se faz a peneira e o seu ‘caracol’, elemento que ela insistiu ser muito importante.

Sem conseguir fazer o caracol, não é peneira. Nesse instante, ela adentrou sua própria casa e voltou com uma peneira (que eu havia sido apresentada na casa de Carlão) e me mostrou o valor do caracol. Sua simetria, suas diagonais, seu quadrado quase perfeito, a sensação de que há uma circunferência ali, uma circularidade inserida.



Foto do acervo particular de Tibúrcia.



OBRIGADA
Superfícies de um lugar / Quartel do Indaiá
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